Editorial ND1: Criminalizar as vítimas é a segunda violência contra o povo do Rio

O que se desenrola no Rio de Janeiro ultrapassa a fronteira da legalidade e da dignidade humana. Após uma megaoperação policial que resultou em mais de 130 mortos — a mais letal da história do estado —, o governo fluminense e suas forças de segurança anunciam agora a abertura de uma investigação para apurar se moradores das comunidades cometeram fraude processual ao retirar corpos de vítimas da área de mata no Complexo da Penha. Trata-se de uma inversão perversa de papéis: as vítimas da violência são transformadas em suspeitos.

É inadmissível que, depois de uma chacina dessa proporção, a resposta do Estado seja criminalizar os que mais sofreram. A população que vive nas favelas do Rio não é cúmplice do crime — é refém dele e, muitas vezes, também refém de uma política de segurança que há décadas confunde controle com extermínio. Retirar corpos da mata, identificar vítimas e permitir o luto não é fraude: é humanidade. São cidadãos tentando restituir dignidade à morte, quando o Estado lhes nega até o direito de enterrar seus mortos.

O ND1 entende que o combate ao crime organizado é dever de qualquer governo, mas jamais pode ser conduzido fora dos limites da Constituição e dos direitos humanos. O que ocorreu na Operação Contenção não é apenas uma tragédia: é um sintoma de um Estado que perdeu a capacidade de distinguir justiça de vingança. Nenhuma sociedade democrática pode aceitar que a letalidade policial seja celebrada como troféu político.

O número de mortos coloca o Rio em estatísticas comparáveis às de zonas de guerra. O discurso de que “só morre bandido” é, além de desumano, falso e perigoso. Em operações com tamanha dimensão, a probabilidade de haver inocentes entre os mortos é altíssima — e, mesmo entre os culpados, o Estado não tem o direito de ser executor. O devido processo legal não é um favor; é a base do Estado de Direito.

Investigar moradores que recolheram corpos é perseguir o elo mais fraco de uma tragédia anunciada. O papel das instituições deveria ser garantir perícia, identificação e respeito aos mortos — não intimidar quem tenta socorrer e reconhecer seus familiares. O que o Rio precisa não é de mais investigações contra o povo, mas de respostas contra a impunidade e o descontrole que há décadas transformam as favelas em campos de batalha.

O ND1 repudia qualquer tentativa de transformar vítimas em culpados e defende a urgente apuração independente das mortes ocorridas na Operação Contenção. A democracia não sobrevive quando o Estado autoriza a barbárie e depois pune os que tentam dar nome a ela.

*Essa é a visão do conselho editorial do ND1.